Recensão crítica sobre o livro De Memórias nós Fazemos de Violante Saramago Matos
Violante Saramago Matos, De memórias nos fazemos, Porto, Edições Esgotadas, 2022, 130p.
De Memórias Nos Fazemos começa por ser uma homenagem de Violante Saramago Matos a José Saramago. A autora está em busca tanto do homem e autor real, o pai que escreve, pensa, cria, age, como de si própria, mulher adulta que é capaz de ir ao passado em busca do tempo irremediavelmente perdido mas que continua, em muitos aspetos, vivo no presente. Bióloga e escritora, Violante Saramago Matos sabe que na vida não há propriamente cisões; há devir, movimento sem fim.
Neste livro, Violante Saramago Matos, também pintora, mulher de ideias e ação que em jovem se opôs à ditadura e disso sofreu as consequências (esteve presa três meses na infame prisão de Caxias, em 1973), evoca memórias de diversas fases da sua vida. A autora dialoga com as suas memórias, mais e menos recentes, e evoca o pai, mas também a mãe (Ilda Reis, Prémio Europeu das Artes), a sua infância, a sua adolescência, a sua vida adulta.
Em particular, vemos como José Saramago, antes e depois do Nobel, enquanto pai, homem e cidadão empenhado, está completo e íntegro na obra que nos deixou, na poesia como no romance, na crónica mais literária como na mais política, no teatro como na entrevista, no ensaio como no depoimento e no diário.
Cada vida é única e intransmissível, mais ou menos marcada por memórias que aceitamos ou rejeitamos, memórias que nos fazem e que convocamos, reconstruímos,
refazemos, reinventamos. Com essas memórias vivemos e com elas temos de saber lidar, se queremos ter uma vida mais integral. Daí o título muito sugestivo deste livro; sugestivo nas possibilidades de antecipação do conteúdo, mas também apelativo semântica e prosodicamente, graças ao recurso ao hipérbato (figura de sintaxe usada com mestria por poetas como Luís de Camões e Bocage, como é bem sabido): De memórias nos fazemos (em vez de Fazemo-nos de memórias).
Este livro é um tríptico, dobra-se em três unidades que se completam entre si e são unificadas pela dedicatória (o poema “Ao meu pai”) e pela “Nota de abertura”: “I. De
memórias nos fazemos”, com trinta e oito textos; “II. E de livros também”, com oito textos; “Mergulhos”, com um texto (“Empurrões”). Estes quarenta e sete textos são literatura do eu, mais ou menos periódica, regular, que tem a sua origem na releitura “de alguns livros do meu pai” (p. 7). A evocação de José Saramago, de episódios relevantes na relação pai-filha, é o elemento ordenador destes textos, que também são autênticas crónicas, ao mesmo tempo intimistas e de autognose, de avaliação de uma vida que ousa olhar para trás, com os riscos que isso implica, para se conhecer melhor e se reinventar no presente e para o futuro.
Violante Saramago Matos rememora acontecimentos da vida privada, mas também da vida coletiva, evoca episódios memoráveis para Portugal, a Literatura Portuguesa e a Língua Portuguesa. Por exemplo: a atribuição do Prémio Nobel da Literatura a José Saramago e os dias de Violante Saramago Matos e de José Saramago em Estocolmo, em 1998, o discurso no jantar dos Laureados, com a crítica direta e lúcida a quem, nos cinquenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, continuava (e continua) a não cumprir com os seus deveres (os governantes e nós, cidadãos).
O estilo deste livro, todo ele atravessado pela função catártica e pela função estética, caracteriza-se por uma bem medida articulação entre confessionalidade e reserva que nada tem a ver com o tom melodramático ou exibicionista em que os textos do eu tantas vezes incorrem. Violante Saramago Matos assume a “regra” saramaguiana da letra maiúscula para indicar uma fala. Melhor: todo o livro é uma grande fala que nos seduz também por isso, por uma oralidade solta, comunicativa, isenta de quaisquer maneirismos, continuamente à procura do tom certo, do ritmo adequado à comunicação de memórias e de pensamentos.
Não por acaso, a importância da escrita é definida numa frase lapidar. Exatamente no final, a filha refere-se a umas palavras que o pai lhe escreveu e que foram decisivas na sua vida: “Escritos, porque escrevendo diz-se mais e melhor” (p. 125. Sublinhados no original). Num tempo de ruído e de palavras que se acumulam e atropelam, este reconhecimento do valor da palavra escrita é a síntese final e memorável da homenagem a José Saramago que este livro é. Violante Saramago Matos dá-nos a ver um Saramago inteiro nas suas múltiplas vertentes: o pai atento à educação da filha enquanto criança, adolescente e jovem adulta (pai que, sem nunca apelar a castigos físicos, como era costume no tempo, soube dialogar, aconselhar e ensinar com casos reais, como se vê no episódio dos miúdos que estavam a trabalhar num dia em que a pequena Violante não queria sair da praia e, por isso, sem sucesso, tentou impor a sua vontade recorrendo ao choro); o homem político que nunca desistiu das suas convicções humanistas e de um trabalho ativo na sociedade portuguesa e mundial, antes e depois de 1998; o escritor que se fez com persistência, sem pressa, ao longo de décadas, a começar em Terra do Pecado (1947). A obra de José Saramago, o volume, mais de quarenta livros, impressiona e pode conduzir os novos leitores a uma ideia errada ou muito incompleta do percurso do escritor. Já o sabíamos, mas, com tudo o que a filha nos diz do pai, em diferentes fases da sua vida, esta evidência fica agora mais completa: Saramago não escondeu o seu pensamento, escreveu e viveu, foi consequente nos seus atos, não quis viver apenas para a sua obra.
De memórias nos fazemos é um volume de homenagem a José Saramago, recordo, como nos diz a autora. Em certa medida, é uma resposta da filha ao pai, que, em 1993, numa carta reproduzida em fac-símile no final do volume, lhe pede (como já notei acima): “Dá-me notícias que não sejam só as das chamadas telefónicas. Escrevendo diz-se mais e melhor” (p. 126. Sublinhados meu). Neste livro, Violante Saramago Matos cumpre plenamente esta que é mais uma das inúmeras e inesquecíveis máximas saramaguianas, e fá-lo até nas leituras críticas argutas de alguns dos livros de José Saramago. A autora não é crítica literária, mas isso não a impede de propor linhas de interpretação de livros como O Ano de 1993 e O Ano da Morte de Ricardo Reis que, só por si, fariam deste livro aquilo que ele já é, no seu conjunto: parte da melhor bibliografia sobre José Saramago enquanto pai, cidadão e autor que tinha tudo para não ser distinguido com o Nobel da Literatura nem para ser quem foi: um escritor e um homem de causas cívicas e éticas primeiro entre os primeiros. De memórias nos fazemos é tanto um organismo vivo como uma casa em que José
Saramago habita com a pulsação de quem não morre. A responsável por esta sobrevida é Violante Saramago Matos, a filha que, com a mesma naturalidade com que tem sido bióloga, escritora e pintora, nos convida a sermos também guardadores e herdeiros dignos desta voz universal que encanta e chora, adverte e avisa, denuncia e reprova todos os tipos de indiferença, desigualdade, abuso e violência, aspira e clama por tempos em que a harmonia e a beleza sejam a norma, não a exceção.
Carlos Nogueira