Dora Nunes Gago, Travessias. Contos Migratórios, Viseu, Edições Esgotadas, 2014
Numa era marcada pela globalização, pelas trocas capitalistas e por fluxos migratórios transnacionais, Dora Gago traz-nos um surpreendente e lúcido livro de contos com o título de Travessias. Contos Migratórios. Autora de cinco livros de ficção e um de poesia, este seu último, publicado em 2014, configura-se como um amplo mosaico geográfico abarcando três continentes. Decerto, estas viagens, migrações, transposições de fronteiras terão como fonte de inspiração elementos biográficos derivados das próprias travessias pessoais da autora.
Mas aqui a biografia não é mais que um lugar que transporta a geografia para um outro, mais íntimo e profundo, dentro de si mesma, que lhe permite a sensibilidade de uma escrita humana, preocupada com o social. Neste sentido, este livro de doze contos é também ele um mosaico da condição social do ser humano.
Nele encontramos personagens – na sua maioria femininas, mas não só – desfavorecidas economicamente, cuja forma de subsistir consiste em usar a sua aparente bela voz a cantar em autocarros.
Tal é caso de Mariana, estudante de Antropologia em Montevideu, filha de uma família pobre do interior do país, que se deixa seduzir por um estrangeiro que lhe promete a fama e uma carreira brilhante se esta o acompanhar a Barcelona a fim de gravar um CD. O seu destino é com certeza o de muitos que se deixam cegamente aliciar na esperança de uma vida melhor e no cumprimento dos seus sonhos.
Por vezes, os resultados encontram-se para além da imaginação. A música perpassa ainda outros contos, como é o caso de “De música e magia”, de índole diferente do anterior, mas em que a necessidade de emigração para conquistar um sonho é nota fundamental. E, se o sonho se cumpre, as condições económicas mantêm-se. Mas a vida, como a retrata Dora, às vezes paga com momentos mágicos, tecidos da matéria dos sonhos, irrepetíveis e capazes de produzir união através da solidariedade entre os seres humanos. Nos contos de Dora Nunes, o leitor atravessa vários lugares distantes entre si no espaço, atravessa fronteiras reais e imaginárias, mas nessa travessia algo permanece estável, a perturbação de algo óbvio, mas que muitas vezes se esquece, a própria condição de se ser humano. Apesar do espaço que cada ser humano habita a sua natureza e vivência elementar repete-se pelos quatro cantos do mundo: sofrimentos, preocupações, humilhações, conflitos, traições, perdas, tragédias, enganos… tudo isto e muito mais, não sem deixar, como nos transmitem os contos de Dora, de perder a esperança e a ilusão de um mundo e futuro melhores para todos. E é a solidariedade no fundo que perpassa todos os seus contos, como um fio que os une, alertando o leitor para a sua necessidade se quiser habitar um mundo em que cada vez mais sonhos se concretizam e não apenas a sua vã esperança. Num mundo contemporâneo em que cada vez mais as travessias fazem parte da vida de cada um, é necessário que não as façamos cortando apenas os limites geográficos mas os limites do próprio ser, identificando-nos com ele.
O último conto, “Átropos”, conta-nos a história de uma personagem feminina cuja vida foi marcada pela invisibilidade. Tal como a maioria das suas personagens que, de um modo ou outro, se encontram estigmatizadas pela invisibilidade da sociedade que as rodeia, a deste último conto é uma mulher trabalhadora e honesta – valores que hoje em dia se encontram relegadas para os campos da História ou da ficção (p. 127) – cuja luta para ter algum reconhecimento na carreira literária parece ser em vão: Publicara até à data quatro livros que pareciam ter o verdadeiro dom da invisibilidade: ninguém os vira, ninguém os comprara, ninguém os lera, ninguém os criticara, eram meros fantasmas que habitavam as prateleiras mais recônditas de raras livrarias (p. 120). É apenas quando se torna Átropos e se encontra um lugar, além-tempo e além-vida, no seio de uma etérea tranquilidade (p. 132) que a esperança advém. Decerto que os livros de Dora Nunes Gago estão vivos e que merecem ser lidos, criticados e aplaudidos antes que chegue a nossa última travessia. Sandra I. Sousa
Artigo publicado em, CLEPUL em Revista, nº 4, Junho de 2015